POR UM FUTURO ONDE AGOSTO SEJA APENAS UM MÊS, E NÃO O SÍMBOLO DE UMA LUTA

O GRITO SILENCIOSO POR TRÁS DA COR LILÁS

Agosto, no Brasil, se veste de lilás. A cor, que simboliza a luta contra a violência doméstica e familiar contra a mulher, tinge campanhas, ilumina monumentos e domina as discussões públicas. Contudo, a iniciativa “Agosto Lilás” é muito mais do que uma campanha de conscientização; ela funciona como um catalisador para a ação, um lembrete anual e incômodo da dívida histórica que a sociedade brasileira tem com suas mulheres. A campanha, ao mesmo tempo que celebra e ilumina a robusta arquitetura de proteção da Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, expõe as profundas fissuras em sua aplicação, evidenciadas pelos números alarmantes de uma violência que insiste em não ceder.

A ideia deste artigo é a de desdobrar as camadas que compõem este cenário paradoxal. Analisar como o Brasil, detentor de uma das legislações mais avançadas do mundo no combate à violência de gênero, ainda falha em proteger suas cidadãs de forma eficaz. Argumentar que a existência da lei, por si só, é insuficiente quando a cultura do machismo estrutural e a persistente negligência institucional formam uma barreira quase intransponível. A partir da análise do problema, explorar o papel fundamental da denúncia como ferramenta de transformação e delinear o caminho a ser percorrido, que exige uma responsabilidade compartilhada e perene, para que um dia, finalmente, agosto seja apenas mais um mês no calendário, e não o símbolo de uma luta diária pela sobrevivência.

A GÊNESE DA PROTEÇÃO: A LEI MARIA DA PENHA

Para compreender a magnitude do Agosto Lilás, é imprescindível revisitar a origem da lei que o inspira. A Lei Maria da Penha não nasceu de uma concessão legislativa, mas sim do sangue, da dor e da incansável resiliência de uma mulher. Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica cearense, foi vítima de duas tentativas de feminicídio por seu então marido em 1983. Na primeira, ele atirou em suas costas enquanto ela dormia, deixando-a paraplégica. Na segunda, tentou eletrocutá-la durante o banho.

O que se seguiu foi uma batalha judicial que expôs a inércia e a conivência do sistema de justiça brasileiro. Após quase duas décadas de luta por justiça sem uma resposta efetiva do Estado brasileiro, o caso de Maria da Penha, com o auxílio de ONGs, foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Em 2001, o Brasil foi condenado internacionalmente por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica. Essa condenação histórica foi o estopim que forçou o país a se movimentar. Como parte das reparações, o Estado brasileiro se comprometeu a criar uma legislação adequada para coibir esse tipo de crime.
Assim, em 7 de agosto de 2006, foi sancionada a Lei Maria da Penha. Ela representou uma revolução jurídica, ao tipificar a violência doméstica como uma violação dos direitos humanos e criar mecanismos para sua prevenção e punição. A lei definiu cinco formas de violência — física, psicológica, sexual, patrimonial e moral — e estabeleceu medidas protetivas de urgência, como o afastamento do agressor do lar e a proibição de contato com a vítima, além de prever a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. A lei é, portanto, o alicerce sobre o qual o Agosto Lilás se ergue, uma conquista forjada na luta e um símbolo de esperança.

O PARADOXO BRASILEIRO: LEIS FORTES, VIDAS FRÁGEIS

A existência da Lei Maria da Penha é um marco civilizatório inegável. O “Agosto Lilás” surge como seu braço de comunicação, uma estratégia vital para disseminar o conhecimento sobre os direitos das mulheres e os canais de denúncia. Anualmente, a campanha mobiliza governos, empresas e a sociedade civil, promovendo debates, palestras e ações que visam quebrar o ciclo da violência. No entanto, a realidade brutal, traduzida em estatísticas, nos força a encarar um doloroso paradoxo: por que, mesmo com uma legislação tão completa e uma campanha de ampla visibilidade, a violência contra a mulher continua a atingir níveis epidêmicos no Brasil?

Essa disparidade entre a força da lei no papel e a fragilidade da vida das mulheres na prática pode ser explicada por dois fatores interdependentes e profundamente enraizados: o machismo estrutural e a falha institucional.

A CULTURA QUE MATA: O MACHISMO ESTRUTURAL

O machismo não é apenas um conjunto de atitudes individuais preconceituosas; é um sistema de opressão que estrutura as relações sociais, políticas e econômicas. Ele se manifesta de formas sutis e explícitas, perpetuando a ideia de que a mulher é um ser inferior, uma posse, e que o homem tem o direito de exercer controle e poder sobre seu corpo, sua mente e sua vida.

Essa cultura se reflete:

  • Na culpabilização da vítima: Frases como “mas o que ela fez para provocá-lo?” ou “ela estava usando uma roupa curta” desviam a responsabilidade do agressor e a colocam sobre a vítima, desestimulando a denúncia.
  • Na normalização da violência: O ciúme é romantizado como prova de amor, o controle é visto como cuidado e a agressão verbal é minimizada como “coisa de casal”.
  • Na desvalorização da palavra da mulher: Mesmo quando a mulher busca ajuda, sua narrativa é frequentemente posta em dúvida por autoridades, familiares e pela sociedade, um fenômeno conhecido como gaslighting institucional.
  • Na dependência econômica e emocional: O controle financeiro exercido pelo agressor é uma das ferramentas mais eficazes para manter a mulher presa no ciclo de violência, tornando a decisão de sair uma escolha quase impossível para muitas.

Enquanto essa mentalidade não for ativamente desconstruída em todas as esferas — da mesa do bar às salas de aula, dos púlpitos das igrejas aos corredores do poder —, a Lei Maria da Penha continuará a ser uma fortaleza cercada por uma cultura que a sabota diariamente.

A ENGRENAGEM QUEBRADA: A NEGLIGÊNCIA INSTITUCIONAL

Aliada à cultura machista, a negligência institucional cria um ambiente onde a impunidade floresce. Ter a lei não basta se o Estado não fornecer os recursos e a estrutura necessários para que ela seja cumprida de forma plena e eficaz. Essa falha se manifesta de diversas maneiras:

  • Subfinanciamento de Políticas Públicas: A rede de proteção prevista — que inclui Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), Casas-Abrigo, Centros de Referência e Varas Especializadas — opera, em grande parte do país, de forma precária. Faltam recursos para contratar pessoal, para garantir atendimento 24 horas e para expandir os serviços para cidades do interior, onde a violência muitas vezes é ainda mais invisibilizada.
  • Falta de Capacitação e Sensibilização: Agentes públicos que compõem a linha de frente do atendimento frequentemente não recebem treinamento adequado para lidar com a complexidade da violência de gênero. Isso resulta em um acolhimento inadequado, revitimizador e que desacredita o relato da mulher, afastando-a do sistema que deveria protegê-la.
  • Morosidade do Sistema de Justiça: A demora na concessão e fiscalização de medidas protetivas de urgência pode ser fatal. Muitas mulheres são assassinadas enquanto esperam por uma resposta do Judiciário. A sensação de que “não vai dar em nada” é um poderoso desincentivo à denúncia e um incentivo à reincidência do agressor.
  • Falta de Integração: A comunicação entre os serviços de segurança, justiça, saúde e assistência social é, muitas vezes, falha ou inexistente. Uma abordagem fragmentada é incapaz de oferecer à vítima o suporte integral de que ela necessita para romper o ciclo de violência de forma sustentável.

A DENÚNCIA COMO ATO DE RESISTÊNCIA: QUEBRANDO O CICLO

Neste cenário desolador, a denúncia emerge como a ferramenta mais poderosa de transformação. É o elo que conecta o sofrimento individual à estatística que fundamenta a criação de políticas públicas. É o grito que rompe o silêncio opressor do espaço privado e exige a responsabilização do espaço público. Cada ligação para o Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher), cada chamado para o 190 (Polícia Militar em casos de emergência), cada mensagem enviada por aplicativos e cada boletim de ocorrência registrado em uma delegacia é um ato de coragem e resistência.

Denunciar não é apenas um pedido de socorro; é um ato político. Alimenta o sistema com dados que comprovam a urgência do problema, pressiona o poder público por respostas e sinaliza para outras mulheres que elas não estão sozinhas. Fortalecer e facilitar esses canais, garantindo um atendimento humanizado e sigiloso, é uma das tarefas mais urgentes. É preciso, também, construir uma rede de apoio comunitária que encoraje e ampare a vítima no momento da denúncia, pois o medo da retaliação e do julgamento social ainda são barreiras imensas. A luta contra a subnotificação é, em essência, a luta pela visibilidade da própria violência.

O DESAFIO COLETIVO: ESTENDER O ESPÍRITO DO AGOSTO LILÁS PARA TODOS OS DIAS DO ANO

O objetivo final não pode ser, e não é, celebrar uma campanha bem-sucedida a cada mês de agosto. O sucesso verdadeiro será medido pela irrelevância da própria campanha. A construção de um Brasil onde tais mobilizações se tornem desnecessárias é um desafio colossal que repousa sobre os ombros de toda a sociedade. A responsabilidade é compartilhada e precisa ser exercida de forma contínua, estendendo o espírito do Agosto Lilás para todos os dias do ano.

  • O Papel do Poder Público: É dever inalienável do Estado ir além do discurso. Isso significa garantir orçamento robusto e perene para a rede de proteção; expandir o número de DEAMs e garantir seu funcionamento; investir massivamente na capacitação de todos os agentes públicos; e criar programas de reeducação para agressores, visando quebrar o ciclo da reincidência.
  • O Papel do Sistema de Justiça: A Justiça precisa ser mais célere, eficaz e humana. Isso implica em priorizar o julgamento de casos de violência doméstica, fiscalizar rigorosamente o cumprimento das medidas protetivas — inclusive com o uso de tecnologia, como tornozeleiras eletrônicas — e garantir que a perspectiva de gênero norteie todas as decisões judiciais, evitando a revitimização e a impunidade.
  • O Papel da Sociedade Civil e do Setor Privado: A sociedade precisa se levantar e agir. Isso se traduz em não se omitir diante de um sinal de violência, em desconstruir ativamente preconceitos e piadas machistas no dia a dia, em cobrar políticas públicas eficazes e em apoiar o trabalho de ONGs que atuam na linha de frente. As escolas têm um papel crucial na educação de meninos e meninas para a igualdade de gênero. As empresas podem criar políticas de tolerância zero contra o assédio e oferecer suporte a funcionárias em situação de violência.
  • O Papel de Cada Cidadão: A mudança começa no individual. Cada cidadão, homem ou mulher, tem a responsabilidade de ser um agente ativo na proteção das mulheres. Isso significa educar-se sobre o tema, ouvir e acreditar nas vítimas, ensinar o respeito aos filhos, não compartilhar conteúdo misógino e, fundamentalmente, intervir de forma segura quando presenciar uma agressão. Para os homens, em especial, cabe o papel de questionar e confrontar o machismo em seus próprios círculos sociais, desconstruindo a masculinidade tóxica que alimenta a violência.

RUMO A UM FUTURO ONDE A LUTA DÊ LUGAR À PAZ

O Agosto Lilás cumpre hoje um papel fundamental de jogar luz sobre uma das mais graves violações de direitos humanos que ocorrem sistematicamente no Brasil. Ele nos recorda da força da Lei Maria da Penha e da urgência de sua plena implementação. Contudo, devemos encará-lo como um meio, e não como um fim. A meta é mais ambiciosa e mais profunda.

O objetivo final é a construção de um país onde a integridade física, psicológica e moral de uma mulher não seja uma questão de sorte ou de luta, mas um direito garantido e inquestionável. Um futuro onde a denúncia não seja um ato de coragem excepcional, mas um procedimento padrão em uma sociedade que não tolera a violência. Um futuro, em suma, onde agosto seja apenas um mês no calendário, e não o símbolo de uma luta diária pela vida. A jornada é longa e árdua, mas é a única que nos levará a uma nação verdadeiramente justa, segura e livre para todos, e principalmente, para todas.

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